quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Meio Homem, Meio Lobo

Diretor de uma aldeia na Amazônia, José Albuquerque teve que provar que não era lobisomem.

Andavam agitadas as noites na aldeia indígena de Vila Franca, perto do encontro das águas dos rios Tapajós e Amazonas. Um ser terrível emergia da escuridão para apavorar os moradores. E o pior: ele era o próprio diretor da aldeia, o branco José Cavalcante de Albuquerque. Transformado em lobisomem.

Pelo menos era o que dizia o vigário local, Domingos de Lira Barros, espalhando aos quatro ventos a assustadora maldição que acometia o diretor, naquele longínquo ano de 1793. Para livrar seu nome da calúnia, o suposto lobisomem decidiu escrever, de próprio punho, uma longa carta ao governador do Grão-Pará. Fez mais: providenciou a abertura de um auto de justificação, em que foram ouvidas testemunhas sobre as acusações de que era vítima. Não bastasse virar lobo à noite, Albuquerque era tido como mau administrador e chegado a excessos alcoólicos.

Graças a esses documentos, que chegaram aos nossos dias, o ambiente local se revela mais complexo do que parece. E mostra como os mitos e as crendices populares eram fruto de uma rica mistura cultural.

Vila Franca era uma das maiores cidades da região, depois de Belém. No final do século XVIII, sua população contava com dois mil índios. E apenas dois brancos: o padre e o administrador. Os índios não eram um grupo homogêneo. Tinham diferentes origens étnicas e diferentes formas de se relacionar com as regras dos brancos.

A aldeia tinha fama de ser um foco de resistência indígena ao governo. Nomeado em 1790, José Cavalcante de Albuquerque contava com a confiança do governador para conduzir a política local com honestidade. Nascido na Bahia, graduara-se na prestigiada Universidade de Coimbra, em Portugal, e já havia dirigido uma vila no Xingu. Tratava-se de um inteligente reformador com tendências liberais.

Mas em poucos anos sua convivência com os índios azedou. Simplesmente não lhe obedeciam, eram “monstros de ingratidão”. Segundo ele, era impossível forçá-los a trabalhar para a produção comum, pois fugiam da aldeia, e puni-los não era solução.

Para piorar, havia o conflito com o vigário, que seria a origem dos boatos de que virava lobisomem. Cavalcante queria provar que o religioso explorava propositalmente a inocência dos índios, provocando medo neles para convencê-los a tomar partido na disputa pessoal. A atitude sugere pouco caso com a inteligência indígena, o que era típico na época. Algumas testemunhas ouvidas confirmavam esta versão: “Ao abuso que o Padre Domingos de Lira Barros introduzia no fraco e rústico ânimo dos indianos de Vila Franca, dizendo ser o Diretor lobisomem que se transformava em diferentes figuras”, relatou Vicente Marinho, filho de um sesmeiro. 

Aqui a história fica mais interessante. Em primeiro lugar, pelo inusitado fato de o padre escolher uma figura do folclore europeu para atemorizar os índios. Em segundo, pela constatação de que Cavalcante, segundo seus detratores, não virava só lobisomem, mas também outros tipos de seres. Os testemunhos falam de fenômenos como “roda de fogo” e “olhos que botavam fogo”, mas não dão mais referências sobre que seres seriam esses. Talvez essa ausência se deva à repressão oficial que sofria a cultura indígena (considerada bárbara) a partir das reformas civilizatórias promovidas pelo marquês de Pombal, iniciadas em 1755. É possível que os administradores ficassem relutantes em mencionar crenças indígenas numa carta ao governador.

No entanto, pode-se especular sobre os outros mitos associados a Cavalcante. Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo, as lendas que relacionam lobos e humanos são universais. A versão brasileira deriva claramente da cultura ibérica, na qual virar lobo é um castigo por ofensa moral grave, como o incesto. Uma variação amazônica do mito do lobisomem é a cumacanga, algo como “cabeça com línguas de fogo”. A cumacanga é produto de uma relação sexual pecadora de um padre. Em vez de assombrar a vizinhança, como faz o lobisomem, ela se caracteriza por uma cabeça que se desprende do corpo e se transforma numa bola de fogo voando pelo céu em noites de sexta-feira. Essa versão do mito parece existir somente no Maranhão e no Pará, e lembra, se não pelo nome, ao menos pela aparência e explicação, os relatos do processo contra Cavalcante. 

O fogo é um elemento comum a dois outros mitos amazônicos. A anhanga é um espírito mau que protege os animais na floresta. Pode se transformar em qualquer animal, incluindo o ser humano, e faz os caçadores se perderem. Em algumas versões, tem olhos de fogo. Já a mula-sem-cabeça é a transformação que acomete a amante de um padre. A mutação ocorre entre as noites de quinta e as manhãs de sexta-feira. O ser solta faíscas de fogo pelo pescoço, dá coices e emite relinchos assustadores. 

Embora não existam lobos na Amazônia, a convivência dos ribeirinhos com outros seres das águas e dos ares permitiu a criação de figuras fantásticas semelhantes à do lobisomem. Um exemplo é a matintapereira, relacionada a pessoas que viram “porco” ou “cachorro”. Existe aí uma “afinidade natural” na imaginação entre os mutantes seres indígenas e os das tradições européias. 

Os cientistas bávaros Karl Martius e Johann Spix, que produziram seu Viagem pelo Brasil (1817-1820), comentam o medo que os índios sentiam de entidades diabólicas, e chegam a mencionar uma equivalência entre um “encantado” e o lobisomem de origem portuguesa. O encantado aparece como um homem diminuto e também como um tipo de cão com orelhas bem longas, que faz muito barulho à noite. A crônica destaca ainda a semelhança entre os contos dos indígenas sobre o boitatá (rodas ou cobras de fogo) e o que os portugueses entendem como mula-sem-cabeça. 

Mas eles falham ao descrever a versão européia da lenda do lobisomem. Em Portugal, ele não está necessariamente ligado à forma de um lobo. A pessoa pode se transformar em qualquer animal – geralmente cão, bode, porco, cavalo, burro ou qualquer outra espécie de fazenda. De noite, o homem atormentado tira suas roupas, pendura-as num pinheiro e rebola nu na sujeira. É este ato de rodar que determina a transformação: o homem se torna o último animal que esteve naquele lugar. Então, passa a correr muito depressa – não procurando necessariamente animais ou humanos para devorar – e volta ao estado humano quando veste novamente suas roupas. Lobisomens freqüentemente têm a pele amarela, uma condição que pode estar ligada ao consumo excessivo de álcool e à perda de sono. 

A maioria dos colonizadores provinha da classe popular e do antigo campesinato do norte de Portugal, e eles chegavam ao Grão-Pará trazendo idéias xamanísticas: tradições de curas, de poderes extraordinários, de transformações de pessoas em animais e de viagens espirituais. O lobisomem fazia parte dessas tradições. Por sua vez, os habitantes da Amazônia também viviam imersos em fenômenos mágicos desse tipo, chamados de pajelança ou pajeria. Como as relações entre os índios e os primeiros colonizadores incluíam laços de compadrio, casamentos e mancebia, essas interações fantásticas funcionavam como importante vínculo social. Ações de cura e pajelança atraíam todo tipo de pessoas, de todas as classes. Até governadores. Eram atividades ligadas à própria sobrevivência na Colônia: as pessoas precisavam de poderes mágicos para controlar os significados da vida. Ou seja, o xamanismo aproximava os mundos imaginativos do Velho e do Novo Mundo. 

Homens e mulheres que praticavam feitiçaria eram verdadeiras autoridades locais. Com o passar do tempo, padres e missionários também se transformam em pajés e curadores. Há uma remota possibilidade de que Cavalcante, intelectual e político de grandes ambições, interessado pela cultura dos índios, tenha sido um desses novos pajés e, por isso, adquirido o apelido de lobisomem. 

É significativo que o vigário Domingos, também uma autoridade espiritual, tenha sido o ponto de origem do boato do lobisomem. Ele conhecia melhor do que ninguém o mundo religioso e imaginativo dos índios da aldeia, e sabia como explorá-lo. Tinha consciência do que estava fazendo ao tornar públicas as acusações contra Cavalcante. É tentador especular que pode ter sido o padre quem criou a ponte entre as idéias européias e as indígenas sobre seres que se transformam. Ainda que sua intenção fosse apenas desacreditar o inimigo, aparentemente “a coisa pegou”. 

No centro da questão está, é claro, o papel dos índios. Mas suas vozes não aparecem; afinal, a visão dominante era de que são seres “simples”. Não se sabe se compreenderam a figura do lobisomem do mesmo jeito que os brancos. A convergência entre as tradições dependia de certo grau de desentendimento, para que um grupo assimilasse as idéias do outro e assim pudessem conviver. 

A colonização é normalmente descrita como um ato de abuso e violência. Como ilustra o caso do lobisomem amazônico, trata-se de uma visão muito superficial. As pessoas que tomaram parte ativa nesse mundo colonial precisaram lutar para criar um lugar para si mesmas, em que pudessem habitar de modo mais ou menos seguro. A partilha forçada desse ambiente levou, em muitos aspectos, à conciliação desses grupos, mesmo com suas imensas diferenças culturais. O resultado foi a construção de um modo de vida tipicamente miscigenado. E distintamente amazônico. 

Tudo indica que José Cavalcante conseguiu limpar seu nome. Em dezembro de 1821, seria eleito deputado da região do Rio Negro pelas Cortes Reais Portuguesas. Talvez tenha pesado o apelo que, no fim da carta, fez ao governador. Pediu que ele passasse apenas três dias em sua aldeia como diretor, para ver como era difícil fazer cumprir a legislação.

E se foi de fato um lobisomem, deve-se reconhecer que esta era uma maneira admirável de adaptar-se ao desafio cultural que enfrentava: virar mito, e assim ser compreendido, de uma forma ou de outra, tanto por índios quanto por brancos... 


Mark Harris é professor de Antropologia Social da Universidade de St. Andrews, Escócia. 

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